O
atual marco regulatório das boas práticas de manipulação em farmácias, a RDC nº
67/2007, completou dez anos de sua publicação no mês de outubro de 2017, mas esta
resolução não foi o primeiro marco regulatório para o setor. Na verdade, a RDC
nº 67/2007 compila em seu conteúdo normatizações antes regulamentadas pelas RDC
nº 33/2000, RDC nº 354/2003 e RDC nº 214/2006, todas por ela revogadas.
De
um modo geral, a RDC nº 67/2007 formou um arcabouço regulamentar para a prática
da manipulação magistral, objetivando a segurança e a qualidade das preparações
magistrais manipuladas, em defesa da saúde da população. Entretanto, também é
necessário analisarmos os impactos diretos desta regulamentação para o setor
regulado.
As
farmácias magistrais desempenham um importante papel para a saúde pública,
individualizando medicamentos e viabilizando sistemas farmacoterapêuticos que
não podem ser providos pela indústria farmacêutica. E, neste sentido, o setor
não deve ser regulado com os mesmos parâmetros aplicados às indústrias,
considerando a natureza e a dimensão das suas atividades operacionais.
A RDC
nº 67/2007 publica o regulamento técnico que institui as boas práticas de manipulação
em farmácias. E, com isso, fixa os requisitos mínimos para a prática da
manipulação magistral, estabelecendo critérios de qualidade para instalações,
equipamentos, recursos humanos e procedimentos.
É salutar que qualquer processo de construção de uma regulamentação sanitária ouça as partes envolvidas, como a sociedade, o setor regulado e outros setores direta e indiretamente relacionados com a cadeia. Esta participação, além de democrática, deve se fundamentar em princípios técnicos e que não comprometam a sustentabilidade do setor regulado. Isto porque, não deve ser objetivo da agência reguladora comprometer a estabilidade do setor, mas sim, promover qualidade e desenvolvimento de processos em prol da qualidade de vida e da saúde da população.
E
após dez anos da sua vigência? A RDC nº 67/2007 permitiu à ANVISA alcançar tais
objetivos, percebidos principalmente pela sociedade? E quais os impactos
diretos dessa normatização para o setor regulado? Bem, as respostas para estas
questões devem ser obtidas por meio de uma análise ampla e contextualizada.
Não
existem dados estatísticos concretos que demonstrem a evolução da qualidade das
preparações magistrais no Brasil. Entretanto, analisando a participação do
setor no mercado pode-se concluir que as farmácias magistrais têm se
consolidado, o que demonstra que a qualidade ofertada tem sido ao menos, satisfatória.
Considere-se, para essa conclusão, a efetividade dos resultados terapêuticos
obtidos com os medicamentos manipulados e, também, a segurança das preparações
magistrais.
De
acordo com dados publicados no Panorama Setorial Anfarmag: Farmácias de Manipulação
Brasileiras 2015-2016, 61% do setor não demonstrou crescimento de faturamento
nos 12 meses anteriores à pesquisa. Este número é a somatória do percentual
(34%) de farmácias que mantiveram seu faturamento estável e do percentual (27%)
que declarou redução de faturamento no período avaliado.
Estes
dados indicam que o setor ainda encontra barreiras para o seu crescimento. Considerando
os benefícios da manipulação magistral para a saúde pública, compete outra
pergunta: que barreiras são essas? Bem, possivelmente algumas dessas barreiras
tenham relação com aspectos regulatórios que cerceiam o desenvolvimento
produtivo. Isto porque, algumas normas vigentes na RDC nº 67/2007 impõem medidas
às farmácias que não condizem diretamente à natureza ou à dimensão do processo
magistral de produção.
Por
outro lado, certas determinações regulatórias podem limitar algumas atividades
das farmácias magistrais, que podem contribuir para um maior crescimento do
setor. Um breve exemplo disso é a proibição da exposição de produtos
magistrais. Alguns produtos manipulados, como cosméticos, suplementos e
fitoterápicos são enquadrados como isentos de prescrição médica e podem ser prescritos
por farmacêuticos, de acordo com as atuais regulamentações do Conselho Federal
de Farmácia - CFF. A regulamentação sanitária vigente poderia contemplar a
possibilidade de manipulação e exposição de estoques mínimos de alguns desses
produtos, com critérios específicos para a garantia da qualidade. Isso
permitiria ao farmacêutico magistral e, consequentemente à farmácia, prover
cuidados a certas necessidades menores de seus clientes com maior rapidez. E é
evidente que essa prática pode contribuir para a sustentabilidade e o
crescimento do setor.
Entretanto, também é válido avaliar a relação da atual regulamentação sanitária com o estado da arte do setor, ou seja, devemos nos perguntar se as farmácias magistrais teriam alcançado o atual nível tecnológico em que se encontram sem que houvesse um marco regulatório do nível da RDC nº 67/2007. Fato é que, como deve ocorrer com qualquer instrumento regulatório que complete dez aniversários, a RDC nº 67/2007 precisa ser revisada e alinhada com a evolução tecnológica do setor e com os avanços de qualidade conquistados neste período.
A segurança da sociedade que utiliza os produtos e serviços das farmácias magistrais sempre deve ser priorizada neste processo. Entretanto, ignorar os impactos diretos da regulamentação junto ao setor regulado é, também, ignorar a importância do seu crescimento e desenvolvimento no sentido de atender às demandas também crescentes da própria sociedade. Outra linha importante do processo de regulamentação do setor é a capilarização. Entendendo que um setor não é constituído por apenas um nível, se faz necessário distribuir responsabilidades entre as diversas áreas envolvidas. Isto inclui normas mais específicas de padronização da qualidade e especificações de matérias-primas e equipamentos.
Assim, descentralizando as responsabilidades ainda
concentradas nas farmácias, há de se entender que o crescimento do setor envolve
toda a cadeia produtiva, e isso inclui não somente a busca por resultados
financeiros, mas também a construção de um alicerce sustentável fundamentado em
gestão, tecnologia e aspectos regulatórios exequíveis e não limitantes. Assim,
que aprendamos com esses dez anos da RDC nº 67/2007 e que possamos aplicar esse
aprendizado na construção de um novo modelo regulatório que prestigie todos os
objetivos sanitários e que permita o crescimento e o desenvolvimento do setor
magistral, tão essencial à saúde pública brasileira.
Por Lincoln Cardoso,
farmacêutico magistral e professor da Consulfarma.
Farmacêutico Industrial, Título de Especialista em Manipulação Magistral Alopática, Mestre em Ciências Farmacêuticas (Farmacologia). Professor das áreas de Farmacoterapia, Farmacognosia e Química Medicinal. Também atua nas áreas de Atenção Farmacêutica e Farmácia Clínica. Ministra aulas, cursos, palestras e seminários nas áreas de Fármacos & Medicamentos, Atenção Farmacêutica e Farmácia Clínica, em todo o Brasil.